uma mudança de estado, uma estação, um pertencimento, apaixonar-se
Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se. E ficou tão transtornado, se perdeu tanto de nós, se afastou de toda vida, se fechou, se devorou, chorou no prato de carne, bebeu, brigou, me bateu, me deixou com vosso berço, foi para a dona de longe, mas a dona não ligou.
uma queda, um acidente, uma descida, ferir-se
Sai pensando na morte, mas a morte não chegava. Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, visitei vossos parentes, não comia, não falava, tive uma febre terçã, mas a morte não chegava.
um descuido, um engano, um fracasso , despedaçar-se
Me joguei a suas plantas, fiz toda sorte de dengo, no chão rocei minha cara, me puxei pelos cabelos, me lancei na correnteza, me cortei de canivete, me atirei no sumidouro, bebi fel e gasolina, rezei duzentas novenas, dona, de nada valeu: vosso marido sumiu.
DEVOTA , 2010 - 2011
Artista visual, arte contemporanea
"Em algumas visitas ao estúdio de Mirla Fernandes pude ver sobre a mesa uma montanha de tecidos cortados a laser. As cores e a textura “seca” do tecido remetiam a um chão de folhas caídas numa paisagem de outono. Já o corte a laser parecia arriscado. O uso indiscriminado da técnica nos mais diversos materiais (da madeira, plástico, tecido, papel) permeia o mundo do design com resultados que vão do excelente ao medíocre.
Em outra ocasião uma serie de pequenas peças de porcelana branca ocupavam as mesas. Placas ovais, miniaturas de jarros e vasos recebiam uma interferência de desenhos e palavras em tinta dourada. Imagens de flores e um poema de Drummond eram inspiração.
"Nossa mãe, o que é aquele vestido, naquele prego? Minhas filhas,é o vestido de uma dona que passou."
E então ela começou a juntar tudo: recortes, porcelana, Drumond, numa tarefa paciente de costura e bordado. Linhas e agulhas construindo uma narrativa sobre o cíclico território feminino onde o fechamento é ponto de partida para a abertura.
O cuidado presente na inserção de desenhos feitos de linhas, a escolha precisa das cores e a riqueza dos detalhes convocam o espectador a uma contemplação minuciosa, que altera a relação com a velocidade do contemporâneo. O laser vai se esvanecendo e cede diante da potencia da costura e do tempo desacelerado da manufatura. A mensagem se revela num diálogo de opostos: a porcelana dura e frágil, os tecidos e fios macios que unem e sustentam.
O poema sobre amor e dor materializa-se numa construção paciente de fragmentos e recipientes. A idéia de decadência e falência provocada pelas cores e aparência de folhas secas do tecido contrasta com a lisura da superfície da porcelana branca, anunciando uma espécie de renovação. Sua limpeza alva remete ao domínio feminino. Seu formato evoca o preenchimento e revela sua ligação com as imagens de entes queridos impressas como forma de identificação dos túmulos nos antigos cemitérios latinos. A porcelana emoldura e suporta o amor materializado na imagem de entes que se foram. Despedida e memória remontam as transformações do outono. Queda e renascimento, um rosário, uma promessa.
(...)O corpo que se vê é paradoxalmente presença do humano e do sobre-humano. Quem está ali ora é ninfa, ora é santa, ora é natureza. Sem rosto, permanece anônima. É qualquer uma que carrega as contradições e ambigüidades relativas ao universo feminino. Revela também/tão bem as dualidades presentes todos nós."
texto de Ana Paula de Campos
fotografias de Mirla Fernandes e Bianca Viani